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Uma noite, em tempos há muito distantes, o homem acordou e viu a si mesmo.
Ele viu que estava nu sob o cosmos, desabrigado em seu próprio corpo. Tudo dissolvido diante de sua tentativa de pensar. Impressões sobre impressões, horrores sobre horrores desdobraram-se em sua mente.
Então, a mulher também acordou e disse que era hora de ir e matar. Ele pegou seu arco e sua flecha, frutos do casamento entre o espírito e a habilidade manual, e foi para fora, embaixo das estrelas. Mas conforme as feras chegavam em busca de água, no local em que usualmente se encontravam, ele não sentia mais o vínculo do tigre ao seu sangue. Sentia, em vez disso, o grande salmo que contava a respeito da irmandade de sofrimento entre tudo o que é vivo.
Naquele dia ele não retornou com uma presa. E quando o encontraram na próxima lua nova, ele estava sentado, morto ao redor da água.
II
O que houve? Uma quebra na própria unidade da vida, um paradoxo biológico, uma abominação, um absurdo, um exagero de natureza desastrosa. A vida havia excedido seu alvo, desmembrando a si mesma. Uma espécie havia sido fortemente armada — pelo espírito tornado onipotente no exterior, mas igualmente uma ameaça a seu próprio bem-estar. Sua arma era como uma espada sem empunhadura, uma dupla lâmina cortando tudo; mas aquele que a empunha deve agarrar a lâmina e virá-la contra si mesmo.
Apesar de seus novos olhos, o homem ainda era feito de matéria, com seu espírito inscrito nela e subordinado a suas cegas leis. Ainda assim, ele poderia ver a matéria com estranheza, comparar-se a todo fenômeno, enxergar através dele e localizar seus processos vitais. Ele se aproxima da natureza como um visitante indesejado, estendendo em vão seus braços, pedindo para conciliar com seu criador: a Natureza não mais atende. Ela realizou um milagre com o homem, mas deixou posteriormente de conhecê-lo. Ele havia perdido seu direito de residência no universo, havia comido da Árvore do Conhecimento e sido expulso do Paraíso. Ele é poderoso no mundo que conhece, mas amaldiçoa seu poder comprado com a harmonia de sua alma, de sua inocência, de sua paz interior nos braços da vida.
Assim, permanece ali com suas visões, traído pelo universo, maravilhado e assustado. A fera conhecia o medo também, nas tempestades e na garra do leão. Mas o homem amedrontou-se com a própria vida — de fato, com seu próprio ser. A vida — que era para a besta sentir a diversão do poder, era calor e jogo e conflito e fome, para então curvar-se perante a lei. Para a fera, o sofrimento é autocontido; para o homem, ele cria vazios em direção ao medo do mundo e ao desespero da vida. Mesmo quando a criança começa no rio da vida, os rugidos da cachoeira da morte sobem no vale, cada vez mais perto e rasgando, rasgando sua alegria. O homem contempla a terra, que está respirando como um grande pulmão. Toda vez que expira, o deleite da vida se aglomera em seus poros e tenta alcançar o sol; mas quando inspira, um gemido de ruptura atravessa a multidão e cadáveres chicoteiam o solo como granizo. Ele poderia ver não só seu próprio dia, os cemitérios torcidos diante de sua visão, os lamentos de milênios submersos gemendo contra ele a partir das formas fantasmagoricamente decaídas, os sonhos tornados terra das mães. A cortina do futuro abrindo-se para revelar um pesadelo de repetição sem fim, um desperdício sem sentido de matéria orgânica. O sofrimento de bilhões de humanos entra nele através do portão da compaixão, de tudo o que acontece surge um riso para zombar da demanda por justiça, seu princípio organizador mais profundo. Ele se vê emergir no útero de sua mãe, eleva sua mão aos céus. Ela contém cinco galhos. De onde vem esse diabólico número cinco, e o que ele tem a ver com a minha alma? Ele não é mais uma obviedade para si mesmo — ele toca seu corpo em puro horror; isto é você e até aqui você se estende e não mais. Ele carrega consigo uma refeição, ontem uma besta que poderia andar por aí, agora eu a engulo e a faço parte de mim: onde começo e onde termino? Todas as coisas amarradas em causas e efeitos; tudo o que ele deseja compreender dissolve antes de sua tentativa de pensar. Logo ele vê a mecânica até mesmo no que era até então o sorriso de sua amada — há outros sorrisos também, uma bota rasgada com dedos. Eventualmente, as características das coisas são características somente dele mesmo. Nada existe sem ele, toda linha aponta para ele, o mundo é nada senão um eco fantasmagórico de sua voz — ele salta gritando alto, querendo se descartar em direção à terra junto com sua refeição impura, ele sente a loucura iminente e deseja encontrar a morte antes de perder essa possibilidade.
Mas conforme permanece diante da morte iminente, ele compreende sua natureza e a importância cósmica do passo que se aproxima. Sua imaginação criativa constrói prospectos novos e assustadores atrás da cortina da morte, e ele vê que até ali não há nenhum santuário para ser encontrado. Agora ele pode discernir o esboço de seu fim biológico-cósmico: ele é o cativo desamparado do universo, mantido para cair em possibilidades inominadas.
Deste momento em diante, ele está num estado de pânico incessante.
Tal ‘sensação de pânico cósmico’ é fundamental a toda mente humana. De fato, a raça parece destinada a perecer visto que qualquer preservação e continuação efetivas da vida são descartadas quando toda a atenção e energia individuais se dirigem para suportar, ou retransmitir, a alta tensão catastrófica interior.
A tragédia duma espécie tornando-se desapropriada para a vida devido à superevolução não é exclusiva à raça humana. Nesse sentido, pensa-se, por exemplo, que certos cervos em tempos paleontológicos sucumbiam conforme adquiriam chifres muito pesados. As mutações devem ser consideradas cegas, elas trabalham, são jogadas adiante, sem qualquer contato com seu ambiente.
Nos estados depressivos, a mente pode ser vista na imagem desse chifre, em todo seu esplendor fantástico imobilizando seu portador no chão.