O original, em inglês, pode ser lido clicando aqui.
Imagine a vida antes do dinheiro. Digamos que você assou pães, mas precisa de carne. E se o açougueiro da cidade não quisesse seus pães? Você teria que encontrar alguém que quisesse, trocando seu pão até conseguir um pouco de carne.
Dá para perceber como a situação acaba ficando incrivelmente complicada e ineficiente. E é por isso que inventaram o dinheiro: para facilitar a troca de produtos… Certo?
Esse mundo histórico do escambo soa bem inconveniente e pode, na verdade, ser uma completa invenção. O homem que é creditado como o fundador da economia moderna, o filósofo escocês Adam Smith, popularizou a ideia de que o escambo foi precursor do dinheiro. Em A Riqueza das Nações, ele descreve um cenário imaginário: um padeiro vivendo antes da invenção do dinheiro deseja a carne de um açougueiro, mas não possui nada de interessante para oferecer em troca. “Nenhuma troca, nesse caso, pode ser feita entre eles”, escreveu Smith.
Esse tipo de situação era tão indesejável que as sociedades devem ter criado o dinheiro para facilitar a troca, argumenta Smith. Aristóteles possuía ideias semelhantes, que agora são uma fixação dos livros introdutórios de economia. “Basicamente, nas primeiras economias as pessoas aderiram à troca”, diz um deles. “O indígena americano com um pônei à disposição tinha que esperar até encontrar outro indígena que quisesse um pônei, e que ao mesmo tempo poderia e desejaria trocá-lo por um cobertor ou outra mercadoria que possuísse”, encontra-se escrito num livro ainda mais antigo.
Vários antropólogos, no entanto, apontam que essa economia de troca nunca foi testemunhada em nenhuma das partes menos desenvolvidas do mundo. “Nenhum exemplo de economia de escambo, numa forma simples e pura, foi descrita; muito menos foi descrita a emergência do dinheiro a partir dela”, escreveu Caroline Humphrey, professora de antropologia de Cambridge, num artigo de 1985. “Toda etnografia disponível sugere que isso nunca ocorreu”.
Humphrey não está sozinha. Outros acadêmicos, incluindo o sociólogo Marcel Mauss e o economista político de Cambridge Geoffrey Ingham têm exposto argumentos similares.
Quando o escambo aparece, não aparece sozinho e o dinheiro não surge dele — pelo contrário, ele surge do dinheiro. Após a queda de Roma, por exemplo, os europeus usaram o escambo como uma substituição das costumeiras moedas romanas. “Na maioria dos casos conhecidos, [o escambo] tem lugar entre pessoas que são familiarizadas com o uso do dinheiro, mas que, por uma razão ou outra, não têm muito dinheiro”, explica David Graeber, professor de antropologia da London School of Economics.
Se o escambo nunca existiu, o que houve então? Antropólogos descrevem uma grande gama de métodos de troca — nenhum dos quais parecidos com a variante que legitima a troca de “duas vacas por 10 bushels de trigo1”.
Comunidades Iroquois, nesse sentido, armazenavam seus bens em casas-longas2. Conselhos liderados por mulheres, a partir disso, alocavam os bens, explica Graeber. Outras comunidades indígenas baseavam-se nas “economias de dádiva”, que funcionavam da seguinte forma: se você fosse um padeiro que precisasse de carne, você não ofereceria seus pães em troca dos filés do açougueiro. Em vez disso, você faria sua esposa comentar com a esposa do açougueiro que vocês estão com deficiência de ferro. Aí, a esposa dele diria algo como: “ah, sério? Peguem um hambúrguer, já temos o suficiente!”. Depois disso, o açougueiro poderia querer um bolo de aniversário ou uma ajuda na mudança para um novo apartamento e você poderia ajudá-lo.
No papel, isso soa um pouco como escambo a longo prazo, mas podemos encontrar diferenças significativas. Em primeiro lugar, é muito mais eficiente do que a ideia de Smith, já que não depende de cada pessoa possuir simultaneamente algo que o outro quer. Além disso, ninguém nunca associa um valor específico à carne ou ao bolo ou ao trabalho responsável pela construção de casas, o que significa que dívidas não podem ser transferidas.
Ademais, numa economia de dádiva, a troca não é impessoal. Se você está trocando com alguém importante, você “inevitavelmente vai se importar o suficiente com esta pessoa para levar em conta seus desejos e necessidades”, argumenta Graeber. “Mesmo que você troque uma coisa por outra, você provavelmente vai compreender a situação como uma troca de presentes”.
A troca comercial ocorreu, de fato, em sociedades não-monetárias, mas não entre concidadãos. Em vez disso, era utilizada quase que exclusivamente com estrangeiros, ou mesmo inimigos, acompanhada muitas vezes de rituais complexos envolvendo troca, dança, banquetes, brincadeiras de luta ou sexo — em algumas situações, envolvendo tudo isso de forma intrincada. Peguemos como exemplo o povo indígena Gunwinggu da Austrália, conforme observado pelo antropólogo Ronald Berndt nos anos de 1940:
Homens do grupo visitante sentam-se quietos enquanto mulheres da porção oposta vêm até eles, dando-lhes tecido, batendo neles e os convidando à cópula. Elas tomam toda liberdade desejada com os homens, em meio ao divertimento e aos aplausos enquanto a cantoria e a dança continua. As mulheres tentam descobrir o ventre dos homens ou tocar seus pênis, tentando também arrastá-los do “local anelar” ao coito. Os homens vão com suas… parceiras, mostrando-se relutantes, para copular nos arbustos, longe dos fogos que iluminam os dançarinos. Eles podem dar tabaco ou miçangas para as mulheres, que, ao retornar, dão parte do que receberam a seus próprios maridos.
Enfim, é um pouco mais complicado do que só trocar um pedaço de tecido por uma quantidade de tabaco.
Nenhum acadêmico com quem conversei estava ciente de qualquer evidência de que o escambo tenha precedido o dinheiro, apesar da prevalência dessa história nos livros de economia e no imaginário popular. Alguns deles argumentam que ninguém nem chegou a acreditar que o escambo fosse real — a ideia seria um modelo rudimentar usado para simplificar o contexto dos sistemas econômicos modernos e não uma teoria real a respeito dos sistemas anteriores.
“Eu não acho que alguém acredite que essa tenha sido uma situação histórica. E isso inclui os economistas que escrevem os livros introdutórios”, disse-me Michael Beggs, conferencista de economia política na Universidade de Sidney. “É mais um experimento mental”.
Mesmo assim, Adam Smith parece ter realmente acreditado na validade do escambo. Ele escreve: “Quando a divisão do trabalho começou a tomar forma, esse poder de troca deve ter sido frequentemente obstruído, tímido, em suas operações” e prossegue descrevendo as ineficiências do escambo. Beggs diz que muitos textos de economia, de forma descuidada, parecem apoiar esse ponto de vista. “Eles meio que usam esse conto de fadas”, explica o autor.
Parte da dificuldade em imaginar um mundo pré-dinheiro reside no fato da existência do dinheiro ter se dado há muito tempo. Na Índia, sua primeira forma se deu em barras de prata no século VI d.C. As primeiras moedas apareceram na Lídia (atual Síria) por volta da mesma época.
Os seres humanos, no entanto, existem há mais tempo do que o dinheiro e, consequentemente, seria um erro imaginar que a economia moderna reflita alguma espécie de natureza humana primordial.
“A teoria econômica deve sempre ser fundamentada historicamente”, afirma Beggs. “Vejo como um erro pensar que é possível encontrar nas origens do dinheiro a resposta para problemas monetários atuais”. Ele enfatiza que embora o escambo talvez não tenha sido generalizado, é possível que ele tenha acontecido em algum lugar e dado origem ao dinheiro, visto que desconhecemos muito a respeito de um período de tempo tão longo.
Embora alguns antropólogos saibam há bastante tempo que o sistema de escambo era somente um experimento mental, a ideia é extremamente popular. Isso, aliás, não é uma mera curiosidade acadêmica — a ideia do escambo pode ter alterado a História.
“A visão do mundo que forma a base dos textos econômicos… tornou-se tanto parte de nosso senso comum que encontramos dificuldade em imaginar qualquer outro arranjo possível”, escreve Graeber em Dívida: os primeiros 5.000 anos.
Graeber assevera que o mito do escambo implica que humanos tenham tido desde sempre um tipo de mentalidade voltado à troca, já que o escambo é somente uma versão menos eficiente do dinheiro. Mas se você considerar que outros sistemas completamente diferentes existiram, o dinheiro passa a parecer menos como uma consequência natural da natureza humana e começa a se assemelhar mais a uma decisão.
Por um lado, o mito do escambo “torna possível imaginar um mundo que não é nada mais do que uma série de cálculos a sangre frio”, escreve Graeber em Dívida. Essa visão é bem comum, mesmo com economistas comportamentais argumentando convincentemente que os seres humanos são muito mais complicados, e menos racionais, do que os modelos da economia clássica sugerem.
O dano, contudo, pode ir além da visão comprometida sobre a psicologia humana. De acordo com Graeber, assim que se associam valores específicos a objetos, como é comum numa economia monetária, torna-se incrivelmente fácil associar valores a pessoas, de forma não a criar, mas pelo menos a viabilizar instituições como a escravidão (em que pessoas podem ser compradas) e o imperialismo (que é possibilitado por um sistema que pode alimentar e pagar soldados que lutam longe de seus lares).
Concordando ou discordando da validade de afirmações tão amplas, vale a pena notar que a dívida por dinheiro, subproduto da moeda, tem sido usada frequentemente por alguns grupos para manipular outros. Thomas Jefferson, por exemplo, sugeriu que o governo estimulasse os nativos americanos a comprar bens com crédito, para que eles se endividassem e fossem forçados a vender suas terras. Atualmente, vizinhanças negras encontram-se desproporcionalmente empesteadas de ações judiciais cobrando dívidas. Mesmo após levar em conta a renda, ações envolvendo cobranças de dívida são duas vezes mais comuns em bairros negros do que em bairros brancos. 34 milhões de dólares foram confiscados de bairros majoritariamente negros de St. Louis em processos intentados entre 2008 e 2012, muitas das vezes apreendidos diretamente dos salários dos endividados. Em Jennings, um subúrbio de St. Louis, havia uma ação judicial para cada quatro habitantes no mesmo período.
Se o dinheiro é, então, uma escolha, há alternativas válidas? Uma economia de dádiva — que não endividaria pessoas; que se sustenta a partir da responsabilidade e da confiança comunais — é preferível ao sistema monetário? Ou será que as pessoas se aproveitariam de seus vizinhos?
É difícil responder sem ter a possibilidade de ver de fato uma economia de dádiva em ação nos dias de hoje. Felizmente, elas ainda existem. Numa pequena escala, elas existem entre amigos, que podem emprestar um aspirador de pó ou um pouco de farinha um para os outros. Existe até mesmo um exemplo dessa economia numa escala muito maior, apesar de não funcionar o tempo inteiro: o Encontro Arco-Íris [Rainbow Gathering], festival anual em que aproximadamente 10 mil pessoas se reúnem por um mês nas florestas (ele rotaciona entre várias florestas nacionais ao longo dos EUA a cada ano) e concordam em não levar nenhum tipo de dinheiro. Grupos de participantes montam “cozinhas” onde preparam e servem comida para milhares de pessoas diariamente, de forma gratuita. Economistas clássicos talvez previssem que as pessoas tentariam tirar proveito desse sistema, mas todos são alimentados. E as pessoas que não cozinham tocam música, criam trilhas, dão aulas, juntam madeira, atuam em peças teatrais e daí por diante.
De qualquer forma, uma coisa é manter uma comunidade viva e funcional quando todos estão acampando na floresta, optando por viver aquela visão; outra coisa é imaginar uma economia de dádiva que permitiria a construção de arranha-céus, a invenção de iPhones, a colocação de ares-condicionados em cada casa e a exploração do espaço — e o mesmo vale para o recolhimento de impostos e a administração de grandes negócios. Não que seja uma situação de tudo ou nada: afinal, nós já temos economias dessa ordem entre amigos e família. Talvez seja possível, então, expandi-la dentro de comunidades pequenas. Caso não seja possível, essa alternativa é pelo menos desejável.
Unidade de medida utilizada nos EUA e no Reino Unido.
Habitações comunitárias encontradas na Ásia, na América do Norte e na Europa.